Reflexões sobre o 51º Festival Nacional de Folklore de Cosquin

Programamos, minha mulher e eu, nos fazermos presentes nesse festival de folklore, tão decantado como o mais importante da América Latina. Aproveitando um vôo direto da Gol, que sai de Porto Alegre  e vai até Cordoba, para lá fomos para desfrutar de "siete lunas" (o total, este ano, foi de "onze lunas")!

De Cordoba a Cosquin são 54 quilômetros por uma rodovia simples, bonita e pavimentada, que percorremos num carro locado. Em Cosquin, instalamo-nos num Hotel previamente agendado (Puerta del Sol), que, lamentavelmente, era de qualidade muito inferior e tivemos de conviver com isso.

Cosquin é uma pequena cidade (não mais do que 15 mil habitantes), mas que, nessa época, gravitam nela cerca de 40 mil pessoas, atraídas pelo espetáculo público do Festival e pelas festas que se desenvolvem em peñas públicas, privadas e nas ruas da cidade. Esta, localizada num vale entre montanhas de 700 a 1200 metros de altura, se transforma, a partir das 19 horas, numa festa popular, onde se respira música e dança, no embalo das zambas, chacareras, taquiraris, carnavalitos, cuecas e outros ritmos típicos. Em cada rua do centro da cidade, se reunem, por quadra, pelo menos dois ou três grupos de música típica: e o povo - nós aí incluídos - dança e se diverte. É um espetáculo sui generis, porque dançam na via pública velhos, jovens e crianças de todas as idades. O impressionante é que para ali acorrem argentinos das mais variadas regiões do País hermano, embalados pelo mesmo sentimento "de amor a la tierra y a la musica gaucha".

O leito das ruas, a partir das 19 horas, fica praticamente intransitável, tal a concentração de pessoas assistindo os espetáculos de rua e as danças descompromissadas que ali se desenvolvem.

A organização do evento é um caso à parte. Simplesmente perfeita: pode-se comprar ingressos por antecipação, os lugares são numerados e os preços variam de acordo com a localização no espaço do evento (um auditório ao ar livre, com cerca de 4 mil lugares). Quando se chega ao portão de entrada, cada espectador é conduzido por um atendente que o leva até o local exato do ingresso adquirido e só se senta na cadeira de fibra que lhe foi destinada depois que esse mesmo atendente limpa com esmero o assento e o encosto dela! A organização é tão perfeita que não há confusão, não há balbúrdia, não há atravancamento, sendo recomendável que cada festival nativista do nosso Rio Grande do Sul enviasse para lá um emissário para se abeberar de como se faz um evento dessa natureza.

Bem, agora, vamos aos espetáculos principais que se realizam em cada uma dessas onze noites no auditório Ataualpa Yupanqui, localizado na Plaza Prospero Molina. Antes de qualquer outra coisa, vale destacar o som e a iluminação ali reinante: simplesmente maravilhosos. Coisa de profissionais que realmente entendem do metier. Nesse palco multicolorido, além das danças típicas, de excepcional beleza plástica e de uma força incrível, que a todos contagia, desfilaram vários monstros sagrados do folclore latino-americano, como Los Olimareños e o grupo Intilimani, mas com predominância dos argentinos (Victor Heredia, César Isella, León Giecco, Argentino Luna, Antonio Tarragó Ross, Teresa Parodi, Luis Salinas, Soledad Pastorutti e muitos outros). Teresa Parodi é um capítulo à parte. Eu já havia ouvido falar muito dela, mas ainda não havia tido o privilégio de ouvi-la em gravações ou assisti-la em palcos. Sequer sabia que ela compunha. Trata-se de uma compositora de primeiríssima grandeza, que transita pela arte chamamecera como poucos. Grande presença de palco e uma voz potentíssima. Praticamente quase todas as canções que nos brindou com sua soberba interpretação eram de sua autoria. Uma verdadeira dama da música “gaucha” argentina. Um ícone. Mas vários outros nomes, menos conhecidos de nós rio-grandenses e quase todos de qualidade excepcional, se apresentaram também no Auditório Ataualpa Yupanqui. Cito-os, porque merecem ser lembrados e para que se anotem os nomes: Cláudia Piran (uma anã de voz potentíssima, uma verdadeira máquina de cantar, que levou o público ao extase, ao interpretar a Ave-Maria de Schubert); Juan Falú (excelente compositor e intérprete), Peteco Carabajal (idem, idem), Mariana Cayón (uma bela morena, provavelmente de ascendência índia, que toca flauta (quena) como poucos); Duo Ballieto Vitale (duo instrumental fora de série); Los Guitarreros, grupo vocal muitíssimo além da conta, com apoio instrumental de músicos de exceção. As vozes desse quarteto são individualmente diversificadas e o resultado da combinação delas é simplesmente impressionante, deixando no olvido qualquer daqueles grupos notórios, como Los Chalchaleros, Los Fronterizos, Los Tuco-tuco e outros; Los Nocheros (outro quarteto vocal maravilhoso que vai na esteira do anterior, qualidade excepcional); Los Carabajal, grupo vocal com 40 anos de existência e já com formação renovada, pelo desaparecimento de alguns de seus integrantes originários. Tudo que se falar sobre chacareras passa por esse grupo; Trio MJC (grupo instrumental de qualidade superior); Opus 4 (grupo vocal masculino de meia idade, pouco conhecido entre nós, mas de qualidade além da conta); Franco Luciani (um jovem gaitista, que arrancou frenéticos aplausos do público presente); Raly Barrionuevo, jovem cantor e compositor de temática romântica, de qualidade excepcional: violonista e intérprete de primeira linha, simpatia e carisma indiscutíveis, arrancou suspiros da platéia feminina que, salvo engano, predominava no auditório. Bisou três vezes e o público não queria que ele encerrasse sua participação. Creio ter tido ele, ao lado de Teresa Parodi, Los Guitarreros e Los Nocheros, o desempenho mais rutilante de todo o evento (pelo menos nas siete lunas em que nos fizemos presentes).

De tudo isso que assistimos, permito-me fazer alguns comentários que julgo convenientes trazer para a nossa aldeia rio-grandense. Causou-nos certa decepção o fato de, nesses espetáculos oficiais, não termos visto nenhum cantor ou grupo vocal envergando a indumentária típica, "gaucha". Tratando-se um festival de música "gaucha", tal omissão pareceu-nos reprovável. Bem sei que o folklore argentino é diferenciado: Ariel Ramirez, de formação clássica, enveredou no folklore argentino, tocando piano e cravo, vestido de smooking. Mas foi um caso praticamente isolado, às vezes seguido por Eduardo Falú e pelo grande charanguista Jayme Torres.

Mas se isso, a nosso ver, foi contraproducente, merece os mais acalorados elogios a temática literária utilizada pela quase totalidade dos nomes que desfilaram nessas considerações: as abordagens foram românticas (a grande maioria), houve inúmeros cantos de amor à terra ou a locais paisagisticos de apreciável interesse público, bem como sobre os ancestrais e personalidades que, de alguma forma, se notabilizaram no cenário de "la tierra", fossem elas ainda vivas ou já desaparecidas; houve também abordagens sobre os problemas de natureza social. Por outro lado - o que me parece de suma importância - não houve, em momento algum (pelo menos no palco oficial) nenhuma canção cuja letra falasse em cavalo, em aporreados, em égua xucra, em gineteadas, em touros bravos ou em lides campesinas)!  Julgo que isso seja um exemplo para nós, porque, a despeito de nossa música nativista haver evoluido consideravelmente, não há como negar que "nuestros hermanos" ainda estão, pelo menos, cerca de 20 a 25 anos na nossa frente. Não tenho cansado de dizer que a nossa abordagem romântica é pequena, mais parecendo que o nosso gaúcho não ama. Nossa temática romântica é esparsa, merecendo ser incrementada, não havendo motivos para que tenhamos receio de enfrentar essa abordagem. De outra parte, nosso Estado, que já foi o celeiro do Brasil, apresenta tantos problemas (ouso citá-los: safras frustradas, estiagens, enxurradas, desmatamentos que geram desertos, assoreamento dos rios, o problema das comunidades indígenas, o êxodo rural, que ainda persiste; e agora um problema inverso: o citadino que, temente da insegurança dos grandes centros, compra uma fração de terra para tentar viver dela e...se frustra, porque, não dispondo de conhecimentos para lidar com ela, faz com que tudo acabe dando errado). Diante de tudo isso, entendo que tais problemas merecem ser abordados pelos nossos letristas (o problema está neles), porque, salvo rotundo engano de minha parte, cresceu a qualidade dos intérpretes, dos instrumentistas, dos melodistas e dos arranjadores. Isso não quer dizer que não tenhamos excelentes letristas. Claro que temos, mas me parece que grande parte das abordagens literárias está equivocada ou, numa palavra mais contundente, DESCOMPROMISSADA. Qualidade poético-literária, por si só, não basta. É preciso haver conscientização de que as abordagens temáticas precisam ser renovadas e adequadas à realidade do mundo rio-grandense.

Ficam aqui, portanto, essas considerações que julgo oportunas e para que, daqui pra frente, REFLITAMOS!

Marco Aurélio Vasconcellos
26/02/2011

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