Estava cansado e faminto. Vagara dias sem conta por veredas e trilhas, canhadas e charcos, depois que o deixaram em um canto de corredor numa estrada vicinal. Em vão tentara encontrar o caminho de volta. Ao redor, tudo lhe parecia estranho e hostil. Aquelas paragens, na aparência e nos odores, eram completamente diferentes das que conhecia.
Se ao menos tivesse podido vislumbrar pela janela o caminho tortuoso e poeirento que o homem fizera, aos solavancos, com a velha camioneta... Durante todo o trajeto, nada lhe restara senão ficar espremido entre o encosto do banco e a lataria da cabina. Dali só saiu quando o homem parou aquela banheira velha e o enxotou, aos trancos, para fora. Em seguida, o algoz fora-se à la cria, levantando polvadeira por aqueles cafundós. Ainda tentara, por algum tempo, acompanhar o veículo que se afastava. Todavia, o cansaço fora-lhe entorpecendo os músculos, que já não obedeciam à sua vontade. Acabara num relvado, resfolegando, a contemplar, atônito, a camioneta que, lá longe, se distanciava cada vez mais.
Por que o homem fizera aquilo com ele? Num repente, deu-se conta de que não o veria mais, nem ouviria sua voz de profundo rancor, não veria mais a casa, o galpão, o arvoredo, o açude, os companheiros de caçadas.
Ah, as caçadas... Estava apenas se iniciando nelas, mas sabia que havia feito sempre o melhor que podia. Quantos tatus, mulitinhas e pacas tinham ido parar nos tentos do homem? Até um veado mateiro, certa vez, fora encurralado contra um paredão, facilitando as coisas para o caçador. Lembrava, ainda, os latidos da matilha em desabalada e ziguezagueante correria atrás de uma lebre fugidia.
Sentiria, também, imensa saudade do terreiro. Era a sua alegria no intervalo das caçadas, principalmente quando o homem ia à cidade buscar mantimentos. Perdera a conta das galinhas, frangotes, marrecos e patos que abocanhara. E isso sem falar na quantidade de ovos que roubara do galinheiro. A lembrança do gosto quente e viscoso do ovo recém posto pela choca inundou-lhe a boca de saliva. E agora, de um momento para outro, via-se ali naqueles ermos, sozinho, exausto, o corpo doído de tanto vagar pelas estradas e campos. De vez em quando, dava com algum casebre e vasculhava restos de comida. Tudo em vão.
Por fim, achou-se numa rodovia movimentada: carros e caminhões indo e vindo, deslocando no ar redemoinhos de poeira grossa. A cada rugido das máquinas, apavorado, encolhia-se todo no acostamento.
Num breve intervalo de calma, percebeu uma família de preás a correr no outro lado da rodovia. Cinco ao todo. A fome aumentando, seus olhos comiam a presa maior. Agachou-se - os músculos retesados - sem tirar os olhos do preá macho. O buraco no estômago crescendo, crescendo. Rastejou alguns palmos. Depois, mais uns centímetros, cada vez mais lentamente. O olhar fixo, hipnotizando a caça. Ergueu um pouco as pernas, preparando o impulso, e disparou como uma flecha para o acostamento oposto. Já antegozava os dentes penetrando naquele corpinho peludo e tenro. Nem sequer notou o imenso cargueiro que rugia como um demônio. Foi num segundo. Sentiu uma dor lancinante no costado, que se irradiou pelas entranhas. Seu corpo voou para o lado, indo cair numa macega espinhenta. Tentou erguer-se. Não conseguiu. Doía-lhe cada fibra dos músculos.
O céu, até então de um azul radioso, aos poucos foi ficando cinzento e embaçado. Ainda vislumbrou, sem muita nitidez, um bando de marrecas piadeiras cortando o espaço e logo desaparecendo por trás de uma coxilha.
Marco Aurélio Vasconcelos
Eldorado do Sul, 10.04.94
Postar um comentário